Há algumas décadas, nossa rotina era bastante diferente. Chegávamos em casa por volta das 18 horas, tomávamos um banho, íamos jantar com a família e assistir TV logo depois. Compartilhávamos um único aparelho de TV na sala, que exibia a novela das oito horas, em seguida um programinha relaxante (geralmente de humor) e, por volta das 22:30, já estávamos preparados para dormir. Essa rotina comum naqueles tempos é descrita pela pesquisadora especialista em distúrbios do sono, Mônica Andersen, da Universidade Federal de São Paulo e Instituto do Sono, em uma entrevista para o podcast “Detetives da Saúde”, da revista Saúde.
De lá pra cá, não só os hábitos diurnos mudaram, mas também os relativos ao sono – ou, mais precisamente, à falta dele. Os distúrbios do sono se agravaram substancialmente nas últimas duas décadas e a humanidade passa a dormir em média duas horas a menos. A mudança pode parecer pouca, mas ela vem impactando sobremaneira na qualidade de vida das pessoas. O sono é responsável pelo equilíbrio dos hormônios em nosso corpo, assim como pela formação de anticorpos, motivação, memória, bom funcionamento do coração, atenção e concentração, desempenho sexual, qualidade do humor e disposição para se movimentar.
Tanto a diminuição do número de horas de sono necessárias a cada pessoa (em média, o ideal seria de sete a oito horas de sono por noite), assim como a diminuição da qualidade deste sono (que pode cursar com insônia), podem trazer enormes prejuízos. De acordo com a doutora Mônica Andersen, as consequências vão desde aumento da pressão arterial, passando por maior susceptibilidade a acidentes, até desenvolvimento ou agravamento de quadros de ansiedade e depressão. Ou seja, estamos falando de uma mudança comportamental e de hábitos que acabam impactando fortemente nossas vidas.
Dentre os vários responsáveis por esse quadro, o advento da internet, claro, costuma ser apontado por muitos especialistas em Medicina do Sono como um elemento importante, além das mudanças ocasionadas na rotina de trabalho e de vida da população mundial. A reunião em torno da TV assistindo em geral programas relaxantes mantinha as famílias reunidas e acolhidas ao final do dia, que terminava bem mais cedo. A chegada em casa significava o desligamento das atividades, uma vez que o trabalhador não era facilmente acessado e o serviço ficava no ambiente de trabalho, e só seria retomado no dia seguinte, às 8h da manhã.
Não que as tecnologias e a possibilidade de fazer home office, por exemplo, sejam o problema em si. Elas são ferramentas que podem nos possibilitar novas possibilidades e até melhores oportunidades, desde que bem utilizadas. O que se discute, na verdade, não é a tecnologia, mas seu (mau) uso e suas consequências.
O sono em crise
Se antes, a rotina de sono já passava por uma mudança não tão positiva, com o advento da crise a situação ficou ainda pior. E não estou me referindo à atual.
Uma pesquisa de 2015 constatou que a crise econômica no país já vinha impactando a saúde mental, especialmente da liderança das empresas. Segundo o levantamento da clínica MedRio Check-up, foi observado um aumento de 37,5% no número de pacientes com depressão no primeiro semestre daquele ano em comparação com o mesmo período de 2014. No caso da insônia, a alta foi de 19%. Em tempo: a clínica realiza checkups médicos em executivos e funcionários de alta gerência de grandes empresas do país, considerando os resultados da bateria de exames laboratoriais e clínicos de 5.000 pacientes para esse estudo.
Este cenário somado às mudanças de hábitos de rotina, à busca compulsiva por gratificações imediatas proporcionadas pelas redes sociais e à ininterrupção do trabalho que se estendendo de maneira excessiva para dentro de casa através do celular ou do próprio computador foi a receita infalível para a epidemia de insônia inicial (dificuldade em pegar no sono). Junto com ela veio a queda da qualidade do sono, que passa a ser interrompido algumas vezes à noite, prejudicando as funções cognitivas e emocionais, além da imunidade.
Cinco anos depois, chega 2020 e com ele uma crise maior, a da pandemia da Covid-19. Os impactos da pandemia no trabalhador são enormes e vão desde preocupação com uma possível perda de emprego, medo de contrair a doença, mudanças na rotina, distanciamento do ambiente físico de trabalho, aumento do número de horas de trabalho em home office, acúmulo de tarefas domésticas concomitantes à rotina laboral, dentre outros. Tudo isso ajuda a liberar os hormônios e neurotransmissores ligados ao estresse, como o cortisol, os quais estão presentes em maior quantidade quando estamos diante de uma ameaça ou grande desafio e, por consequência, tornam-se dificultadores para o adormecer. Não à toa, uma pesquisa realizada pela empresa global de inovação corporativa The Bakery revelou que as queixas de insônia se tornaram mais frequentes na pandemia. Dos 780 brasileiros entrevistados, 44% afirmaram estar com dificuldade para dormir depois da chegada do novo coronavírus.
Além de todo o estresse, o aumento do tempo de tela decorrente da nossa maior presença no mundo virtual também tem sua parcela de culpa na piora do sono dos trabalhadores. Isso porque a exposição exagerada à luz dos dispositivos eletrônicos contribui para o mau funcionamento de nosso relógio biológico (ciclo circadiano), uma vez que a exposição à luz azul emitida por estes aparatos interfere na liberação do hormônio do sono (melatonina). Entram também para a lista dos “inimigos do sono” a falta de movimentação, baixa exposição à luz solar e a prevalência de notícias ruins na mídia, contribuindo para a construção de um cenário catastrófico no imaginário das pessoas, principalmente aquelas mais vulneráveis à ansiedade.
Tem saída?
É sempre importante consultar um profissional da saúde especialista em sono para não cairmos em modismos como o uso de melatonina sem recomendação médica ou de outros medicamentos. No entanto, algumas trocas de hábitos podem ajudar no que chamamos de higiene do sono.
Como parte dos cuidados com a higiene do sono, a meditação Mindfulness vem sendo fortemente recomendada. Com atuação no sistema nervoso simpático, ela proporciona diminuição dos sintomas de ansiedade e depressão e, se praticada regularmente, pode trazer dentre tantos outros benefícios a diminuição da ruminação (pensamentos recorrentes e persistentes, geralmente de conteúdo antecipatório e catastrófico por vezes relacionados à ansiedade e depressão). Quem sofre ou já sofreu de insônia sabe que essa é uma manifestação bastante comum, principalmente nos períodos de estresse.
Outros cuidados indicados pelos especialistas seguem aqui como sugestão:
– Faça uma refeição leve à noite;
– Dirija-se à cama somente quando realmente tiver a intenção de dormir;
– Mantenha o quarto de dormir bem escuro;
– Não leve o celular para a cama e se possível, deixe-o em outro ambiente;
– Desligue-se dos aparelhos eletrônicos (principalmente com internet) 1 hora e 30 minutos antes de dormir;
– Procure fazer alguma coisa que te relaxe à noite, como conversar com os familiares, assistir um programa de TV de seu interesse (evite noticiários), tomar um chá com calma, ler um pouco etc;
– Procure manter uma rotina com horário para dormir e acordar, colocando a atividade física no seu dia a dia e cuidando das horas de trabalho para que não se excedam, estabelecendo o horário de parar;
– Cuide das relações com as pessoas de casa, para que consiga promover um ambiente harmônico no lar, isto vai desencadear uma sensação de equilíbrio, proteção e acolhida, tão necessários nos dias atuais!
Para saber mais sobre tratamento da insônia crônica, ouça o episódio 21 do meu podcast “Saúde Mental e Mindfulness”, no Spotify. Também vale conferir a lista de todos os conteúdos publicados pelo Great Place to Work sobre saúde mental.
1 comentário
Espetacular .
Isabel e maravilhosa.