Nós, pessoas LGBTI+, somos condicionadas desde muito cedo a guardarmos no armário nossas narrativas, nossas histórias de amor, nossas identidades. Ocultamos fatos diversos sobre nossa individualidade como seres humanos, em meio a um padrão civilizatório que considera o imaginário Cis-Hétero-Patriarcal (respectivamente em alusão à cisgeneridade, heterossexualidade e patriarcado) como o padrão a ser seguido, respeitado e performado por todas, todos, todes, indistintamente.
Performar narrativas e aparentar ser quem não somos demanda uma energia intensa, a qual, no caso do ambiente de trabalho, poderia ser canalizada em inovação, criatividade, engajamento e outros atributos corporativos e sociais fundamentais. Estamos tão focados em cumprir um papel pré-estabelecido, que nos desgastamos com preocupações e medos quando fugimos à “regra”. Não precisava ser assim se a diversidade tão defendida como um pilar fundamental da inovação fosse de fato um pilar, a base de uma empresa, e não só uma bandeira hasteada para ser vista e admirada.
Quando os armários continuam fechados, o que realmente importa na cadeia de valor da sociedade não recebe devidamente nossa atenção. Sim, é verdade que mais e mais as portas destes armários estão sendo abertas. Muitas ainda estão por vir. Mais e mais saímos, não sem dor nem sofrimento, destas prisões em vida, destes confinamentos que insistem em nos colocar, unicamente por ser quem somos e amar quem amamos. Estas prisões, aliás, são muito concretas em alguns contextos. Sermos pessoas LGBTQIA+ em 70 países do mundo é considerado crime e em 11 deles as chances de execução de pena de morte é uma realidade, segundo ILGA (sigla em inglês da Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersex).
Orgulho para além do calendário
Se em junho o mundo celebra o mês do orgulho LGBTI+ em alusão à revolta promovida pelos frequentadores desta mesma comunidade no bar StoneWall em Nova Iorque, devemos mais do que nunca nos orgulhar 365 dias do ano sobre nossas narrativas, nossos saberes, amores e possibilidades imensas de intelectualidade. Nas empresas, sobretudo, o tema deveria permear as ações e práticas corporativas, em vez de se restringir a um debate em um único mês do calendário.
Isso porque as dificuldades vividas por nós também não se restringem a um único período do ano. Destaco aqui duas pesquisas recentes que evidenciam a realidade de preconceito sofrido por profissionais LGBTs em ambientes corporativos. Linkedin, em sua pesquisa Proud At Work 2019, edição Brasil, aponta que 35% de pessoas LGBTI+ no Brasil dizem já ter sofrido algum tipo discriminação no ambiente de trabalho. Os resultados apontam que metade (50%) dos entrevistados LGBT+ disse já ter assumido totalmente a colegas de trabalho sua orientação ou identidade de gênero. No entanto, por outro, um em cada quatro (25%) nunca contou a ninguém. E o motivo por trás dessa decisão é justamente o medo de sofrer represália para 22% destes. Por sua vez, segundo uma pesquisa latino-americana sobre Assédio, Violência e Discriminação à Diversidade Sexual no local de trabalho, rodada em junho/2020 em 18 países da região por um consórcio de consultorias latinas e com apoio da UNAids, cerca de 74% dos quase 1.600 respondentes relataram terem sofrido ou presenciado ao menos um tipo de violência LGBTfóbica, que manifestam-se como violência simbólica, institucional, sexual, assédio e inclusive violência física.
Para avançarmos nessa pauta, é fundamental que à medida do possível mais e mais armários sejam abertos no momento que cada um de nós sinta-se confortável em exteriorizar sua orientação sexual e sua identidade de gênero. Isso requer força, determinação e, acima de tudo, coesão e coerência: agir com coragem – com o coração – por vezes pode nos dar a sensação de que a porta aberta deste armário-prisão imediatamente fechará tantas outras portas da vida. Requer também constância. Diversidade não é assunto de um dia, de uma semana, de um mês. É fundamentalmente o ano todo.
O trabalho de construção
Empresas têm investido pesado em culturas inclusivas junto a seus funcionários. Movimentos LGBTI+ no mundo têm se articulado na luta pela ampliação e mesmo manutenção via legislação sobre nossa representatividade e possibilidades de existência. Tudo reflete uma necessidade de mudança que não vem da noite para o dia, mas que é uma construção contínua e constante. Um trabalho incessante para que as bases de sustentabilidade da vida, tais como a família, os estudos, o trabalho, as interações sociais, não sejam interrompidas ou prejudicadas como costuma acontecer a muitos, muitas, muites de nós no momento exato que nos assumimos pessoas LGBTQI+.
Só por meio dessa construção contínua e constante que a ideia de armários deixará de existir e que, da forma natural como deveria ser, estaremos de fato juntos em sociedade. Esse cenário pode soar utópico, mas alguns momentos da vida me fazem sentir esse sopro de esperança, como aconteceu poucas semanas atrás.
Tenho uma relação muito próxima com meu sobrinho, o pequeno grande homem de minha vida (11 anos de idade). Amor nos une numa escala logarítmica, assim como em meu núcleo familiar. Apesar disso, frequentemente imaginei, até com um pouco de receio, como seria a reação dele ao ter conhecimento de minha orientação homossexual. Ser criado numa pequena cidade do interior de São Paulo tem seus privilégios e restrições igualmente.
Pois bem, meu marido muitas vezes viaja comigo até a casa da minha família, onde respeito e acolhimento hoje imperam. Apesar de se darem muito bem (sobrinho e marido), sempre ficava uma vírgula, “e se ele não entender, se ele não nos acolher?”.
Lindo foi ouvir meu pequeno perguntar se, para além de morarmos juntos e dormirmos no mesmo quarto, se também éramos namorados. “Sim, fofo, somos”. Ao que ele rapidamente explode em um vibrante “yesssss!!!!!!”. Perguntado sobre o que acha disso? “Se existe amor, tudo bem”. Pronto, meu pequeno segue firme rumo a um mundo onde declarações de amor possíveis e diversas a exemplo do presenciado recentemente na TV aberta (link ao final) possam ser visibilizadas e viabilizadas. São momentos como esse que definitivamente mostra a mim que não carrego mais o peso deste armário que limita muites de nós.
Então, pelo direito de amar quem amamos e ser quem somos, para além do mês que celebra o Orgulho LGBTI+, eu lhe digo: gratidão por nos respeitar, por nos acolher e estar, aqui e agora, lendo meu relato. Pois diversidade e inclusão requer coerência, integridade e constância. Requer uma estrutura de Compliance consigo mesmo e com os outros, de forma a promovermos oportunidades para viabilizar e visibilizar narrativas pois, ao final do dia, ganhamos em respeito. E onde respeito impera, amor floresce.